São medidas simples, incrementais e dependentes, no máximo, de Lei Complementar
Ao falar em nome do presidente eleito durante almoço promovido pela Febraban no último dia 25, Fernando Haddad anunciou que a reforma tributária será a principal prioridade do mandato que se inicia em 2023. O tema é tão relevante como complexo.
Os conflitos distributivos inevitáveis em uma sociedade intensamente desigual e excludente; a necessidade de se atar a justiça fiscal à justiça climática; as implicações entre tributos e iniquidades de gênero, raça e origem; as assimetrias do nosso federalismo fiscal; e as pressões da economia globalizada, tendentes a erodir as bases de arrecadação nos países do Sul Global, são alguns exemplos das dificuldades associadas ao aperfeiçoamento do sistema tributário brasileiro.
O estágio atual do campo científico interdisciplinar da sociologia fiscal, que reúne áreas como direito, ciência política e economia com o objetivo de entender fenômenos sociais a partir das finanças públicas, sugere que há facetas ainda não tematizadas e muito promissoras no debate brasileiro sobre a reforma tributária. São medidas simples, incrementais e dependentes, no máximo, de Lei Complementar. Têm, porém, potencial para impulsionarem e qualificarem os processos decisórios sobre tributos junto à sociedade civil, aos agentes de mercado e às lideranças políticas. Abaixo, mencionamos, apenas como exemplos, algumas possibilidades.
1) Educação fiscal
Uma recente pesquisa sobre tax morale em escala nacional, realizada pelo GESF/UFG, com apoio da Febrafite e da AFFEMG, obteve contraintuitivos resultados quanto ao índice de respostas “não sei” em diversas baterias. Este achado é sugestivo de baixíssimos índices de tax literacy no Brasil. Ocorre que é consensual na literatura a relação entre tax morale e educação fiscal. Igualmente corrente é a constatação de que a relação tributária e orçamentária define, particulariza e informa o Estado moderno, de modo que o conhecimento a seu respeito é indispensável à formação de cidadãs/ãos críticos/as e livres. É, desse modo, matéria a se incluir em uma Lei Ordinária que estabeleça uma Política Nacional de Educação Fiscal e de decisão do Conselho Nacional de Educação que estabeleça a inclusão da matéria nas balizas curriculares do ensino médio determinadas pela Base Nacional Comum Curricular.
2) Tributação participativa
A evidência disponível em inúmeros países atesta uma correlação positiva e um encadeamento entre tax morale, tax compliance e margem fiscal para a promoção de políticas sociais. Uma cultura de aceitação da norma tributária impacta sobre os índices de cumprimento do dever de pagar impostos e estes, enfim, são determinantes sobre a redução das desigualdades e a obtenção de receitas que custeiam políticas sociais. Há, ainda, fartura de dados empíricos a indicarem que mecanismos de democracia participativa nos processos decisórios fiscais produzem significativo impacto sobre os níveis de tax morale.
Assim, medidas simples, como a realização de trienais conferências nacionais de justiça fiscal, a promoção de um referendo para decisão sobre resolução do Senado que imponha alíquotas máximas marginais ao ITCMD de até 40% (sob a constatação de que o tributo pode ter alíquotas progressivas, como decidido pelo STF no RE 562.045) e a realização periódica e regionalmente descentralizada de audiências públicas virtuais e presenciais sobre tributação, tendem a ampliar a legitimidade, a cognoscibilidade e a efetividade para redistribuição e redução de desigualdades do sistema tributário brasileiro.
3) Justiça climática e fiscal na COP 30
Lula é globalmente reconhecido por sua liderança na iniciativa que surgiu a partir da “Declaration on Innovative Sources of Financing for Development” que, aliás, é conhecida no campo da diplomacia como “Lula Group”. Trata-se de fórum que reúne 79 países com o objetivo de pensar e implementar tributos globais para o custeio de políticas contra a fome e a pobreza. O Brasil pode liderar dois passos simples, mas muito relevantes, nessa direção: i) conferir à COP 30 o lema de “Justiça climática e solidariedade”, propondo acordos entre as nações participantes para a implementação de tributos globais sobre atividades que impactam o clima e com recursos voltados ao fundo de prevenção e reparação dos efeitos do aquecimento global acordado recentemente na COP 27 e; ii) envidar esforços em sua atuação diplomática para que o “Lula Group” se eleve ao status de Painel Intergovernamental de Tributação Global no âmbito da ONU.
4) Transparência ativa nos dados sobre benefícios e incentivos tributários
A LC 187/2021 alterou o artigo 198, IV, do Código Tributário Nacional, para afastar o direito ao sigilo fiscal das informações sobre “incentivo, renúncia, benefício ou imunidade de natureza tributária cujo beneficiário seja pessoa jurídica”. Neste momento, procuradorias fazendárias e gestores/as ainda não aplicam a norma, vinculando-se a concepções anteriores de preservação das informações de contribuintes.
Esta inovação normativa abre a oportunidade para que os entes da Federação desenvolvam meios de transparência ativa sobre esses dados, permitindo acesso rápido e intuitivo pelos contribuintes com o uso de ferramentas de e-government, além da avaliação permanente do impacto dessas políticas, em especial quanto ao cumprimento dos objetivos que acompanham suas motivações e aos seus potenciais quanto à promoção de emprego, sustentabilidade ambiental e inclusão social.
5) Nudges e administração tributária
Experimentos científico-sociais e estudos de casos sugerem que o emprego de técnicas da economia comportamental nos processos de cobrança tributária tende a produzir resultados venturosos. É possível promover junto às pessoas o senso moral de adesão à tributação e fomentar um ambiente cultural em que as empresas dependam de elevados níveis de compliance para manterem imagem e valor social igualmente altos. Atualmente, mecanismos de machine learning e análise de sentimentos em interações ocorridas no ambiente virtual permitem a identificação de técnicas comunicacionais que promovam o pagamento dos tributos e desestimulem a evasão ou a inadimplência.
6) Reforma do Carf
Para além da necessária reintrodução do voto de qualidade do fisco nas decisões do Carf, há outro aspecto a ser pensado em uma reforma da instituição e de suas correlatas nos demais entes da federação. A contemporânea sociologia fiscal é consensual no entendimento de que a categoria “contribuinte” (tax payer) não rivaliza e, ainda menos, consome a noção de cidadã/ão.
Assim, em complementação aos representantes de associações empresariais (atualmente acrescidos, nos casos de tributos previdenciários, por centrais sindicais), os assentos dos/as contribuintes no Carf devem se abrir para associações, federações, ONGs, movimentos sociais e toda uma vasta gama de atores/atrizes da sociedade civil, eleitos/as segundo processos de democracia participativa digital, conforme etapas que seguem das localidades à composição final em escala nacional. Apenas assim o caráter colaborativo da sociedade com a administração fazendária ressoará o desenho democrático inscrito na Constituição brasileira, superando-se a atual engenharia institucional de matriz oligárquica.
Estes seis tópicos encerram medidas de fácil implementação, ainda subrepresentadas no debate sobre a reforma tributária e aptas a produzirem impactos tão promissores como significativos.
Autores:
Francisco Mata Machado Tavares – Professor da Faculdade de Direito da UFG e coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas Sócio-Fiscais da UFG
Rodrigo Spada – Auditor fiscal da Receita Estadual de São Paulo e presidente da Febrafite (Associação Nacional das Associações de Fiscais de Tributos Estaduais)
Janaína Penalva – Professora da Faculdade de Direito da UnB e pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Sócio-Fiscais da UFG
Pedro Mundim – Professor da Faculdade de Ciências Sociais da UFG e pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas Sócio-Fiscais da UFG
Saulo de Oliveira Pinto Coelho – Professor da Faculdade de Direito da UFG e pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas Sócio-Fiscais da UFG
Carolina Lima Gonçalves – Doutoranda em Ciência Política na UnB e pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Sócio-Fiscais da UFG
Fonte: JOTA